Ontem não olhei para o horário do próximo comboio, na plataforma da estação de Entrecampos. Nem esfreguei as mãos enquanto esperava em pé, junto de mais uma dúzia de estranhos. Não entrei com calma no comboio, a sentir os empurrões dos apressados que receiam não ter lugar. Não me sentei no sítio de sempre, de costas para o caminho e encostadinha à janela. Não me ajeitei, sorridente, no banco nem me concentrei no que conta Gabriel García Márquez nos seus Cem Anos de Solidão. Não viajei nas páginas do livro. Nem viajei com destino a Barcarena.
Ontem também não passei pela loja de mobílias que tem o banco da minha vida, nem fechei os olhos para sentir o cheirinho a pão quente acabado de sair do forno que emana sempre do café dos bolos bons. Não ouvi crioulo nem vi o habitual grupo que às vezes me mete medo. Não caminhei a passos largos até chegar à praceta onde o Clito dorme, com ar de abandonado. Nem fiz a 80 km/h a estrada nova de onde consigo ver se há trânsito na IC19, uma ajuda preciosa para decidir se vou por dentro ou não. E não, não fiquei parada na via do meio à espera que os chico-espertos se metam à minha frente.
Ontem não tive de estacionar o carro em frente à vivenda do vizinho que coloca pedras no passeio, vá-se lá saber com que propósito. Nem senti o cheiro a "casa"- e nunca a comida - tão característico da Vivenda José Maria Marques, o nome do meu avô carpinteiro. Não ouvi o tão melódico "olá miminho" acompanhado de um sorriso a pedir um beijo barulhento, nem vi as luzes da magnífica árvore de Natal decorada pela minha decoradora pessoal.
Ontem, pela primeira vez em muitas terças-feiras, não me sentei no sofá-chucha a ver nada de jeito na televisão, com o barulho de fundo do aquecedor-do-cheiro-esquisito. Nem me tapei com a super manta de pelo fofo, forrada a veludo, que eu tanto gosto. Não esperei o tabuleiro com cereais, não comi uma trufa Raffaello nem discuti as prendas de Natal ainda por comprar. Não tive de acordar a minha mamã com um cafuné e dizer-lhe "anda para a caminha" ao mesmo tempo que rio com as suas caretas e balbucios indecifráveis naquele jeito tão igual ao meu. Ontem não dormi na casa do Cacém.
O trajecto foi outro e o trânsito teve outras paragens. Entre as ruas da capital. Luzes de Natal vermelhas, azuis e douradas e outros rostos. Mais estranhos. As vivendas deram lugar aos prédios antigos, com fachadas centenárias, portinholas verdes e janelas esverdeadas. Ruas estreitas, com carros colados uns aos outros e uma chuva miudinha - e depois mais forte - a limpar os passeios minúsculos. O Tejo já ali, e uma porta velhinha, pintada de castanho, sem fechadura eléctrica. Umas escadas de um só sentido, para uma só pessoa. Magrinha. Tcharan!
Senti que era meu aquele espaço de cores novas. Onde dormi sozinha, numa cama grande. O soalho flutuante clarinho esfriou-me os pés. Experimentei a água quente - aaahhh...tão bom. Ali não cheira (ainda) a casa, nem a comida, nem a incensos ou velas. Cheira a novo, por estrear. E a frescura.
Ali sente-se paixão. Vermelha. E paz. Branca. Também há pozinhos mágicos, de tom prata, à espera de sonhos altos, camuflados pelo dourado. O preto dá o toque especial de uma força poderosa. O desafio. Ontem já tive um pouco de tudo isto, espalhado pelas cómodas divisões do meu "pequeno T1".
Senti de perto o calor de um desejo tornado realidade.
- "Home sweet home", confessei, antes de adormecer.
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