segunda-feira, 21 de julho de 2008

A extravagância de um talento


Ousei pensar em escrever algumas páginas soltas sobre aquela personagem que entrou de repente. Pensei numa história curta, mas não tão breve como foi. Delineei as linhas mestras de um romance que começara com um olhar discreto numa esplanada à beira-mar. Ou talvez com um olhar ousado entre um chá de cidreira num bar no Páteo Bagatela. Não soube definir na primeira linha se seria uma história de amor ou uma paixão arrebatadora. Era uma história com música, animada pelas noites quentes de verão, entre um Requiem de Mozart e um Schostakovich. Outro som, julgava eu. A personagem tinha o seu quê de loucura amena. Marcada pelo temperamento do norte e pela fraqueza de um corpo débil. Adivinhava-se um contra-senso de ideias saudável e uma mais valia pelo desafio à extravagância daquele talento. Dedicado às artes da cor e do movimento, quase que ousei defini-lo como artista. Cheio de devaneios e manias próprias de quem nunca saberá o que quer. Artista não era talvez a melhor definição para quem tentava constantemente combater as emoções e os ensinamentos. Artista seria se soubesse transformar a angústia em credibilidade, o medo em coragem, a afronta em despojamento e a cobardia em frontalidade. Não era artista de sentimentos, nem mestre das palavras, apenas da oratória. Do dom da voz crédula e do tom certeiro que engana qualquer um à primeira vista. Dizia-se aventureiro e artista de mala às costas por esse mundo fora. Capaz de conquistar este mundo e o outro com o dom que trazia na ponta dos dedos. Nunca quis desdizer tal sonho, com receio de soltar o barco mal ancorado. Mesmo assim, sabia-o difícil. Nunca impossível para quem era convicto das suas metas, embora descrente quanto às suas capacidades emocionais. Culpava o mundo das mulheres pelas incompatibilidades e as dores de cabeça pelas faltas de humor. Sim, humor. Não sei definir esta personagem com bom ou mau humor. Muito menos com bom ou mau feitio. Já mo haviam descrito como coração de ouro, embora não me tivessem explicado que antes do ouro havia uma gruta imensa de egoísmo. Não demorou tempo nenhum a descobri-lo. E foi aqui que pensei que poderia escrever um romance, com pés e cabeça e com bons modos. Um desafio interessante para quem se cansou de desenhar personagens improváveis e vazias de talento. Esta era de facto uma imensidão de talento que mostrava apenas com notas soltas a ouvidos de amador. Tarde percebi que a imensidão que conquistei como quem abraça o mundo não era mais do que uma extravagância de talento na qual não sobrava espaço para outra personagem. Não havia espaço para a conquista dos defeitos pelas qualidades, ou da mudança em prol de um projecto a duas mãos. Talvez tivesse sido mais vantajoso não ter dito “sim aceito escrever esta história”, porque agora que tenho o esboço ainda guardado e fresco na memória é sem dúvida mais difícil apagar o barulho das minhas botas a bater na calçada, enquanto caminhava para o inicio desta história.

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