terça-feira, 8 de julho de 2008

A morte do artista


Pode ter sido pelo prato de arroz com pau de canela, na primeira vez que trocámos um beijo. Prefiro pensar assim. Pode até ter sido pelo meu jeito exagerado de arrumar as meias por cores e texturas. Talvez porque gosto de colocar as almofadas do sofá de uma determinada ordem. Porque gosto de ouvir a mix pela manhã ou simplesmente porque gosto de ovos mexidos ao pequeno almoço. Razões suficientes para assinar a morte do artista. Perene e impetuosa. Confesso que não me reconheço quando não faço a cama, quando deixo os sapatos à porta ou mesmo quando não lavo a loiça do lanche. Não me reconheço. Pormenores diriam alguns.

Prefiro, de facto, justificar-me pelo gosto distinto, pela maneira avessa ou até pela exagerada cumplicidade prematura.

Conto ao Gaspar o que sucedeu - o casal tem uma serissa - ouviu ele dizer no outro dia. Mentira, diz ele em tom furioso. As folhas caem e os ramos esmorecem aos poucos. A terra secou e os adubos que tenho adicionado não funcionaram. Nem mesmo as vitaminas de tempos a tempos resolveram a questão. Talvez por isso tenha deixado de dar flores, antecipando de forma autêntica aquilo que se previa desde o momento em que o trouxe para minha casa. Talvez o Gaspar não goste do vaso ou do sitio onde o coloquei. Pensei que podia gostar de sol pela manhã. Que lhe fazia bem sentir o raiar da manhã e ser regado de dois em dois dias. Pelos vistos, não o cuidei da melhor maneira.

Queria poder dar-lhe este mundo e o outro. Ou pelo menos não o deixar morrer entre as minhas quatro paredes. Eles não gostam que os mudem de sitio, alertou no outro dia a perita em bonsais. A verdade é que já o tive em três sitios diferentes, na bancada da memória, na prateleira da saudade e agora na mesa da paixão. Talvez não seja o local mais apropriado para uma arvore tão delicada, tão sensível. Prometo a mim mesma que o vou cuidar melhor, que caso não esteja bem, o levo ao hospital. Não me faz caso nenhum. Responde em tom jocoso que não há nada a fazer.

Cá em casa tenho mais três plantas. Uma orquídea - delicada e prodigiosa. Um semi-cacto, que aos poucos vai renovando a folhagem e um cacto verdadeiro. Este é o que se tem aguentado melhor. Não lhe ligo muito, é certo. Rego-o quando me lembro e tem suportado o calor com alguma facilidade. Talvez esta seja a melhor maneira de lidar com as plantas do meu jardim.

Não vão os experts ficar aborrecidos com o facto de não encarar as plantas como seres vivos.

Talvez a MINHA serissa não seja o melhor exemplo. Receio por ela e por mim. Que sem querer deixei morrer as raízes e secar os ramos mais jovens. E quase me sinto cumplice na morte deste artista.

(...)

Com descrédito, leio o Manual para Bonsais, e verifico que afinal não houve nada de errado. Talvez seja apenas uma questão de perspectiva. Na pior das hipoteses arranjo outro. No outro dia alguém brincava - "há quem diga que para ter um bonsai é preciso deixar morrer dois ou três primeiro". Talvez seja isso.

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