domingo, 20 de maio de 2007

Contra a maré...

É como me sinto...contra a maré do passado, deste presente e do futuro. estou cansada de ouvir o ruído das ondas a bater nas rochas da memória, sempre com a mesma cantiga do mar...de uma onda que vai e que vem sem deixar qualquer rasto...estou cansada das ondas deste presente que cobrem de maresia os meus dias, que enchem de areia o meu sapato e que, sem pedir, recolhem as minhas boas recordações para o fundo do mar...estou farta desta corrente que me arrasta sem âncora e sem horizonte e deste cheiro a sal entranhado na pele. Não quero mais seguir este trilho de mar, que se esvai na linha do infinito, não quero mais apanhar conchas para guardar em saco roto, não quero mais estender a toalha nessa praia suja e sem salva-vidas...não quero pisar as areias outrora já pisadas nem fazer castelos que o mar leva sem avisar...Não quero mais sentir a água a passar por entre os dedos. secam-me as mãos. secam-me as esperanças. seca-me o coração. Estou cansada de lançar os sonhos ao mar. De sentir a água fria nos pés. Contra a maré é como me sinto. Inconfortável por natureza, não me sinto "menina do mar".



[...]
Eu sou a Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. O polvo arruma a casa, alisa a areia, vai buscar comida. É de todos nós o que trabalha mais, porque tem muitos braços. O caranguejo é o cozinheiro. Faz caldo com limos, sorvetes de espuma, e salada de algas, sopa de tartaruga, caviar e muitas outras receitas. É um grande cozinheiro. Quando a comida está pronta o polvo põe a mesa. A toalha é uma alga branca e os pratos são conchas. Depois, à noite, o polvo faz a minha cama com algas muito verdes e muito macias. Mas o costureiro dos meus vestidos é o caranguejo. E é também o meu ourives: ele é que faz os meus colares de búzios, de corais e de pérolas. O peixe não faz nada porque não tem mãos, nem braços nem ventosas como o polvo, nem braços com tenazes como o caranguejo. Só tem barbatanas e as barbatanas só servem para nadar. Mas é o meu melhor amigo. Como não tem braços nunca me põe de castigo. É com ele que eu brinco. Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quando a maré está alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins suspensos de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia fina, branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado. Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro de água como os peixes e posso respirar fora de água como os homens. e posso passear todo e fazer tudo quanto quero e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Grande Raia. E a Grande Raia é a dona destes mares. É enorme, tão grande que é capaz de engolir um barco com dez homens dentro. Tem cara de má e come homens e peixes e está sempre com fome. A mim não me come porque diz que eu sou pequenina de mais e não sirvo para comer, só sirvo para dançar.Quando ela dá uma festa convida os tubarões e as baleias e sentam-se todos no fundo do mar e eu danço em frente deles até de madrugada. E quando a Raia está triste ou mal disposta eu também tenho que dançar para a distrair. Por isso sou a bailarina do mar e faço tudo quanto quero e todos gostam de mim. Mas eu não gosto nada da Raia e tenho medo dela. Até as baleias têm medo dela. Mas eu posso andar à vontade no mar e ninguém me come e ninguém me faz mal porque eu sou a bailarina da Raia. E agora que já contei a minha história leva-me outra vez para o pé dos meus amigos que devem estar aflitíssimos.O rapaz pegou na Menina do Mar com muito cuidado na palma da mão e levou-a outra vez para o sítio de onde a tinha trazido.
[...]
(Menina do mar, pág. 12,13,14)

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