quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

O início do ritual de despedidas

Antes de haver o sonho de fazer erasmus, existiu sempre o sonho de não ter que dizer "adeus"...

Estava sentada com os outros. Pedi um chocolate quente, em vez de um Cappuccino, para conseguir dormir bem. O barulho do café não me incomodava, depois de um dia inteiro a estudar no meu quarto silencioso. Por isso é que tudo se passou talvez tão desesperadamente oprimido, todos nos refugiamos no escudo de um ruído de fundo.
A nossa mesa estava bem situada, à parte e num sítio mais alto, como um altar de celebração. Um sacrilégio, diria eu. O cacau quente adormecia-me a garganta meia doente, o vapor suave e aromático fazia-me respirar melhor. Falámos um pouco sobre o dia de cada um, mas havia pouco a dizer. Tinhamo-nos visto depois do almoço, um pequeno encontro que serviu para ver umas fotos e aproveitar mais uns minutos em grupo. Até ao jantar, pouco ou nada se tinha passado. Pouca ou nenhuma sensação tinha mudado. A atmosfera era praticamente a mesma: pesada, angustiante, despida do encanto que sempre nos acompanhou desde o início de Setembro. Sim, agora o espírito era outro, a mente tinha outros projectos, outros caminhos para a felicidade.
Tentamos forçosamente pequenos diálogos, tentativas frustradas de dar um ar de normalidade, de casualidade. Não conseguimos e a cada minuto que passava a tensão aumentava, descontrolava-se. Já nem faziamos o esforço de sorrir, não valia a pena, sabiamos bem o que cada um sentia, o que esperava a cada um de nós.
Ela ainda não tinha chegado, talvez porque se chegasse mais tarde, teria a boa desculpa de ter que ir embora rápido para não se deitar tarde, e assim não veria as expressões de desconsolo e tristeza. Impulsividade mental...
Vi o chocolate condensado no fundo da caneta fiz uma careta, ao imaginar a conhecida sensação de amargura adocicada que me provoca sempre que bebo leite com demasiado chocolate. Os outros riram. Eu queria rir, mas em vez disso, sorri apenas. Estava realmente ansiosa e já demasiado impaciente para esconder os pequenos sinais. "Tenho de ir à casa de banho". Vi-me ao espelho, lavei as mãos e voltei 30 segundos depois.
Quando ela chegou todos sorrimos. Um pouco pálida, começou a contar como se sentia hoje, depois de dores horrorosas de estômago no dia anterior. Conseguimos uma conversa aparentemente banal talvez durante uma meia hora, um record naquela noite. Esforcei-me por não retirar o sorriso da cara e de fazer brilhar os meus olhos o mais possível enquanto ela falava, sem me deixar cair na tentação de os empobrecer como espelho da minha alma, daquilo que realmente sentia. Ela fez o mesmo, tenho a certeza. Todos pereciamos do mesmo mal: fingir para sermos mais fortes.
"Em breve tenho de ir", disse. Eu sabia que seria assim. Os pequenos objectos emprestados voltaram à proprietária, ela. Ria-se e dizia "obrigado". Num deles, um pequeno livro branco, cujo nome não me recordo, tinha dentro um postal...um perigo em situações que se querem controladas. Espreitou e, por boa educação ou simples curiosidade, leu. Sem hipóteses. As lágrimas assaltaram-lhe os olhos e os óculos embaciaram. Já não havia por que esconder, por que fingir uma indiferença profundamente mentirosa.
Entreolhamo-nos, com aquele olhar meio de censura (pelo descontrolo), meio de compreensão. Todos presenciavamos uma partida. Como todas as partidas, dolorosa.
Ela queria-a rápida e sem tempo para continuar a pingar da cara. Mas eu detive-a com um sorriso e disse-lhe "só mais um pouco". Um erro. Talvez se ela tivesse ido embora naquele instante, a lentidão do meu cérebro ajudar-me-ia a aperceber-me da perda só depois de ela já estar a casa. Assim não foi.
O contagio das lágrimas durou poucos segundos. Lágrimas daquelas que se viam e ouviam em alguns e daquelas que se sentiam apenas pelo olhar contraido, noutros. Eu encontrei-me impávida, com força para lhe dizer adeus sem molhar a cara. Seria por breves momentos.
O barulho agora tornava-se silêncio para nós e as pessoas que nos rodeavam, cheias de vida e de conforto, encontravam-se longe, dispersas.
Os abraços finais começaram. Eu disse-lhe que a acompanharia até à porta do café, talvez porque queria uma privacidade para as minhas lágrimas, para um desalento que não era mais sentido que o dos outros. Mas queria aquele momento, aquela pequena tortura.
Abracei-a forte e não fiz força para não chorar. Proferi palavras abafadas que não sei se entendeu, mas que sei que sentiu. Afinal de contas, vamos reencontrar-nos em Abril, em Berlim.
Sequei as lágrimas e voltei para junto dos outros. A chávena do chocolate quente ainda estava em cima da mesa e ao beber o último golo não consegui sequer sentir a sensação amarga. Quisemos partir logo a seguir, já não fazia muito sentido ficarmos juntos, não logo depois de uma perda.

A Maya ainda a verei em Abril, não sei se pela última vez. Quisemos as quatro marcar logo esta viagem para não nos permitirmos desculpas de caminhos de vida demasiado "empedidores".
Mas e os outros? Sim, os outros que fizeram parte deste percurso desde o início e que me habitaram durante estes cinco meses? Aqueles que vi todos os dias, com quem ri todas as noites, com quem partilhei todos os sorrisos? Esses, ficarão para sempre enclausurados nos escombros da minha memória.
Retidos, mas mimados por todos os momentos maravilhosos que não me permito esquecer...
Este foi o primeiro dia do ritual das despedidas!

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